Harmonias dos mundos, As
Dissertações Espíritas
OS ANIVERSÁRIOS
(Paris, 21 de setembro de 1869)

Há entre todos os homens do mundo moderno um costume digno de elogios, sem a menor dúvida, que, pela força das coisas, logo se verá transformado em norma. Quero falar dos aniversários e dos centenários!

Uma data célebre na história da Humanidade, seja por uma conquista gloriosa do espírito humano, seja pelo nascimento ou a morte de benfeitores ilustres, cujo nome está inscrito em caracteres indeléveis no grande livro da imortalidade, uma data célebre, como disse, vem cada ano lembrar a todos que somente aqueles que trabalharam para melhorar a sorte de seus irmãos têm direito a todo respeito, a toda veneração. As datas sangrentas se perdem na noite dos tempos, e se por vezes ainda nos lembramos com orgulho as vitórias de um grande guerreiro, é com profunda emoção que nos recordamos dos que procuraram, por meio de armas mais pacíficas, derrubar as barreiras que separam as nacionalidades. Isto é bom, é digno, mas é suficiente? A Humanidade santifica seus grandes homens; fá-lo com justiça, e suas sentenças, ouvidas pelo tribunal divino, são inapeláveis, porque foi a consciência universal que as pronunciou.

Povo: a admiração, o respeito, a simpatia comovem o teu coração, animam o teu espírito, excitam a tua coragem, mas é necessário ainda mais. É necessário que a emoção que experimentas encontre eco em todos os grandes Espíritos que assistem, invisíveis e enternecidos, à evocação de suas generosas ações; é preciso que estes últimos reconheçam discípulos e êmulos entre os que fazem reviver o seu passado. Lembrai-vos! a memória do coração é o selo dos Espíritos progressistas, chamados ao batismo da regeneração; mas provai que compreendeis o devotamento de vossos heróis prediletos, agindo como eles, num
teatro menos vasto, talvez, mas dignificante, para adquirir ou fazer que adquiram, aqueles que vos cercam, os princípios de liberdade, de solidariedade e de tolerância, que constituem a única legislação dos universos.

Após quinhentos anos, João Huss vive na memória de todos, ele que não derramou senão o seu próprio sangue para a defesa das liberdades que havia proclamado. Mas, alguém se lembra do príncipe que, na mesma época, ao preço de enormes sacrifícios de homens e dinheiro, tentou apoderar-se das terras de seus vizinhos? Lembra-se dos salteadores armados que exigiam contribuição dos viajantes imprudentes? E, contudo, a celebridade está associada ao guerreiro, ao bandido e ao filósofo; mas o guerreiro e o assassino estão mortos para a posteridade. Sua lembrança jaz encerrada entre duas folhas amareladas das histórias medievais; o pensador, o filósofo, o que primeiro despertou a idéia do direito e do dever, que substituiu a escravidão e o jugo pela esperança da liberdade, está vivo em todos os corações. Ele não procurou o seu bem-estar e a sua glória, procurou a felicidade e a glória da Humanidade futura.

A glória dos conquistadores se extingue com a fumaça do sangue que eles derramaram, com o esquecimento das lágrimas que fizeram correr; a dos regeneradores aumenta sem cessar, porque o espírito humano, engrandecendo-se, recolhe as folhas esparsas em que estão inscritos os atos gloriosos desses homens de bem.

Sede como eles, meus amigos; procurai menos o brilho que o útil; não sejais do número dos que combatem pela liberdade com o desejo de serem vistos; sede dos que lutam obscuramente, mas incessantemente, para o triunfo de todas as verdades, e sereis também daqueles cuja memória jamais se apagará.

Allan Kardec

INTELIGÊNCIA DOS ANIMAIS

(Sociedade de Paris, 8 de outubro de 1869 – Médium: Sr. Leymarie)

Permiti-me, senhores, solicitar por alguns instantes a vossa atenção. Ocupai-vos muito do Espírito de vossos inferiores na Natureza, desses pequenos seres bastante inteligentes para tornar popular a crença, hoje admitida por expressivo número de grandes Espíritos, que na escala ascendente das criações o homem é o topo, depois de ter passado por todos os graus hierárquicos dos seres.

Por minha vez, aqui prestarei homenagem às Harmonias de Kepler, o sábio predestinado que, a bem dizer, concebeu e ditou às gerações futuras os fundamentos inquebrantáveis das leis que hoje guiam os pesquisadores conscienciosos.

A princípio eu vivia custosamente do meu trabalho; depois, chegando as facilidades, pude estudar e aprender. Por companheira, eu tinha uma mulher doce e inteligente e, sem filhos, esperávamos os cabelos branquearem com tranqüilidade. Quando minha esposa morreu, eu tinha sessenta anos; minha tristeza era tão grande que, sempre solitário com minhas lembranças, eu percorria
os grandes bosques que rodeiam Méziers; queria morrer e não podia.

Certo dia, caiu um pássaro aos meus pés, um pequeno gaio. Meu primeiro impulso foi apanhá-lo do chão, aquecê-lo, reanimá-lo; e, com efeito, o pobre animalzinho logo se tornou grande, gentil e, tanto quanto possível, engraçado. Seguia-me por toda parte, parecia adivinhar o meu pensamento. Se eu estava triste, encostava-se em mim, fazia mil caretas e dava mil gritos estranhos, forçando-me a rir. Diante de uma visita, era ameaçador. Seguia-me na jardinagem, esmigalhando a terra e rejeitando os calhaus. À mesa, reclamava sua provisão com insistência e cantava ou imitava o canário, a toutinegra, o gato, o cão, etc...

Que quereis? Os dias tão tristes para mim se tornavam alegres, e este amiguinho, esta singular providência, animava-me interiormente. Fez-me amar a vida e pensar que Deus punha sempre ao nosso alcance uma compensação às nossas penas. Como vós, pensava que o animal devia ser tratado como amigo, como comensal, e que a última palavra do egoísmo e do orgulho humanos devia ser destruído pelo ensino que o vosso venerado mestre procurava propagar. Esta idéia consoladora tornou-se uma certeza e dela fiz o objeto de meus estudos prediletos. Nessas leituras eu encontrava amigos entre os comentadores e os filósofos; e se hoje valho alguma coisa no mundo dos invisíveis, sem nenhuma dúvida o devo ao meu gaio, atirado brutalmente do ninho por algum inimigo malévolo de sua raça.

Por vezes as pequenas causas produzem grandes efeitos. Eu procurava a morte e encontrei a vida radiante e plena das promessas sedutoras e verdadeiras da erraticidade.

Sylvestre

Observação – Durante a sessão na qual esta comunicação foi obtida, discutiu-se a notável obra de Kepler sobre as Harmonias dos Mundos, algumas de cujas passagens foram lidas e comentadas por um dos presentes. Sem dúvida é a este incidente que o Espírito faz alusão.

Sentimo-nos felizes por anunciar que a obra de Kepler53, cuja tradução está muito avançada, será publicada num futuro próximo. Nós nos propomos a fazer a sua análise minuciosa na Revista e assinalar particularmente aos nossos leitores um grande número de capítulos em que a maior parte dos problemas espíritas é tratado com uma elevação de pensamento e um poder de lógica capaz, quem sabe, de atrair seriamente a atenção do mundo erudito sobre a nossa filosofia.

AS DESERDADAS

(Sociedade Espírita de Paris, 2 de julho de 1869 – Médium: Sr. Leymarie)

Venho vos falar hoje das deserdadas, tão numerosas ainda, mas cujo número, reconhecemos com satisfação, está bem 53 A obra As Harmonias dos mundos formará um belo volume in-8 de 500 páginas, ao preço de 5 francos. As pessoas que desejarem adquiri-la tão logo apareça, podem, a partir de agora, dirigir seu pedido ao Sr. Bittard, gerente da Livraria, 7, rue de Lille, em Paris. reduzido, considerando-se o que existia há algumas vintenas de anos.

Essas deserdadas são nossas mães, nossas filhas, nossas irmãs. Outrora elas se ocupavam dos trabalhos penosos. Bestas de carga, máquinas de procriar, vencidas e postas na lista negra como uma coisa, pareciam encarnar por seus sofrimentos todas as brutalidades do dono, todas as potências da força sobre a fraqueza.

A Idade Média ainda nos traz à memória o seu passado doloroso e sua contínua submissão.

Hoje, porém, elas são respeitadas e amadas, pois a instrução se espalhou e o homem começa a apreciar em seu justo valor a companheira que o ajuda a atravessar as provas da vida com tanta solicitude e cuidados ternos e delicados.

Sim, a despeito da educação irritante que nossas mães e nossas irmãs recebem, malgrado essa inoculação de pensamentos opostos aos do homem, a mulher se modifica profundamente. Embora obedeça a um preconceito arraigado a hábitos seculares; posto suas crenças não sejam as nossas e muitas vezes a pátria, o futuro, o progresso e a liberdade para elas sejam letra morta; apesar dessa educação enervante, tudo se transforma à nossa volta. O nosso íntimo se acalma e a nova geração, graças às disposições maternas, será mais forte, mais decidida, amante das artes, da indústria, da paz, da fraternidade e da solidariedade.

Que em vossas cidades se abram cursos, reuniões, obras inteligentes, pois as salas são muito pequenas. Nossas companheiras têm sede de literatura, de ciências, de astronomia; gostam da palavra vibrante e forte dos conferencistas, palavra muitas vezes inspirada, que não cai num terreno estéril, sabei-o bem, porque as crianças recolhem os frutos desses belos e reconfortantes saraus.

Finalmente a hora da redenção chegou para elas. Mães! elas devem reviver em seus filhos; devem dar conta de suas obras à sociedade e, como valentes, querem saber e não ser estranhas a nada; são nossos iguais e nos devem completar. Peçamos para elas o apoio três vezes santo de todos os conhecimentos humanos
postos ao seu alcance.

Quem poderia, pois, melhor compreender o Espiritismo que as mulheres? Para o homem, elas têm a prova íntima de sua força, de seu direito; o que era um pressentimento torna-se uma realidade; para ele, elas aprendem o objetivo de suas longas etapas através da Humanidade e, à vista da sanção espírita, são as boas operárias da obra nova. A família é o futuro, e nossas mães transformarão esta bem-amada família num foco de união, deamor, de benevolência e de perdão. Através da família, haverá uma profunda revolução no mundo do pensamento, e os deserdados cumprirão a obra final para grande proveito da Humanidade.

Bernard

DOIS ESPÍRITOS CEGOS

(ESTUDO MORAL)

Entre os grupos e sociedades espíritas que nos enviam documentos e submetem à nossa apreciação as instruções que lhes são dadas, temos a felicidade de contar a Sociedade de Marselha, que poderia servir de modelo pela gravidade e importância de seus trabalhos e pelo método inteligente e lógico com que procede ao estudo dos problemas espíritas. Seria desejável que todos os centros se comportassem dessa maneira; com isso os espíritas ganhariam seguramente em ciência e dignidade, e a Doutrina em consideração e desenvolvimento.

Consideramos um dever dar a conhecer aos nossos leitores o relato de uma manifestação obtida naquela Sociedade pela mediunidade falante, faculdade que tende hoje a generalizar-se e que se tornará, inegavelmente, para todos os amigos da verdade e do progresso, uma fonte de estudos fecundos em resultados felizes.

(Marselha, setembro de 1869 – Médium falante: Sra. G.)

I – Um dos guias protetores do grupo traz dois Espíritos sofredores, anunciando-os nestes termos:

“Caros amigos, trago-vos dois cegos; ouvi-os atentamente e acolhei-os com simpatia. Deixo-vos por alguns instantes para lhes ceder o lugar, mas em breve voltarei para concorrer à vossa instrução.”

Brunat

Tão logo se retirou o Espírito Brunat, a fisionomia do médium muda bruscamente e anuncia a chegada de um Espírito sofredor. Este último toma a palavra e diz:

“Onde estou, meu Deus? Qual é a minha situação? É permitido sofrer como sofro? e, contudo, que fiz? Não fiz muito o bem, é certo, mas não pratiquei o mal!... Ó vós que me escutais, sabeis quão cruéis são os meus sofrimentos!... Fui arrancado subitamente da Terra quando menos esperava, deixando, nesse mundo que lamento tão amargamente, uma mulher que eu adorava.

“Não sei há quanto tempo estou errando; mas se passaram muitos dias até que eu compreendesse que estava morto. Alguns dias, vários anos? nada sei; mas me parece que suportei os sofrimentos de toda uma eternidade. Ligado ao corpo por laços poderosos, senti os vermes corroendo-me a carne; sofri todas as torturas da putrefação. Por isso, bem compreendo hoje que estou morto. Mas, ai! eu sou cego... Assim, chego ao vosso meio conduzido por não sei quem, impelido por não sei o quê! Sou um pobre infeliz que não vê mais e que ainda encontra, às apalpadelas, os lugares que lhe são familiares; mas, enquanto o cego sabe que é conduzido por seu cão, embora não o veja, eu nada sei. – Oh! como é penoso sofrer assim, procurar sem cessar e jamais encontrar!...

“Como vos disse, deixei na Terra um ser que eu amava; é minha mulher. Desde que a morte me fulminou, não deixei de procurá-la, mas ainda não pude encontrá-la. Em que se tornou?... Quantas vezes faço estalar meu chicote diante da porta da casa! Quantas vezes subi a escada; chegava à porta do quarto e não podia entrar... Como posso entrar na casa? Nada sei; é este o meu tormento incessante, o sofrimento cruel que por vezes me faz desesperar da existência de Deus. Dizem que ele é poderoso, e não pode abrir os meus olhos! Ele é bom, e não pode acalmar minha dor!... Enfim, sem dúvida mereci este suplício, que não me deixa nenhum repouso. Oh! procurar sempre e sempre procurar em vão... Se o amor não fosse uma palavra vã, parece que eu já teria atraído esse ser que amo e sem o qual não posso viver...

“Não sabeis o que foi feito dela? – Não; vejo que nada sabeis! ninguém pode dar notícias suas; creio que ficaria mais calmo se pudesse vê-la e com ela falar! Há pouco tempo eu era mais resignado, porque ainda a esperava; mas hoje minha paciência esgotou-se!...

“Sofro, meu Deus! Por quê? Nada... nada de consolação, nada de resposta, nada de luz... Em toda parte, ao meu redor, um silêncio lúgubre uma escuridão glacial... Quanto não devem sofrer os que semearam sua vida de crimes!... O remorso deve consumi-los, já que eu, que nada fiz, sou incapaz de descrever as minhas angústias... e, depois, esqueci tudo, salvo que não posso voltar; esqueci até a rua onde morávamos e, contudo, ali vou sem me dar conta... Subo a escada... chamo e ninguém me responde; entretanto, alguma coisa me diz que ele me ouve.

“Oh! se pelo menos eu tivesse paciência! Sois bons, bem o sinto; se acreditardes que a prece me faça alguma bem, orai por mim, orai por um cego infeliz.”

Mouraille

II – A este Espírito sucedeu o de Brunat, protetor do grupo; dirigindo-se ao infeliz Mouraille, disse-lhe:

“Caro Espírito, se me sirvo do órgão de um encarnado para te falar, é que sob a opressão dos laços carnais que ainda te dominam, poderás falar melhor assim, ouvir minhas palavras e compreender o seu significado.

“Ouvimos teus lamentos e tua dor nos tocou; compadecemo-nos vivamente e desejamos de toda a nossa alma concorrer para o teu esclarecimento. Mas, para isto, devemos darte a conhecer donde vem essa nuvem espessa que obscurece tua vista!

“Queixas-te com razão, porque sofres realmente e muito!... mas, se acreditas na existência de Deus, não deves ignorarque lhe deves tudo. As alegrias de tua existência e esta própria existência, foi ele que tas deu!... Que fizeste pelos infelizes da Terra, que deixaste? Vieste em seu auxílio? estiveste na mansarda do doente e do pobre envergonhado? alguma vez consolaste os aflitos? enfim, pautaste a tua vida segundo a tua consciência, essa voz divina que fala a cada um a linguagem da caridade, da fraternidade e da justiça? Ai! que podes responder-me?...

“Como vês, a tua foi a vida de um egoísta: se não cometeste crimes como o entendes, como muitos outros viveste para a satisfação de tuas paixões. Tu te agarraste à matéria; do teu ventre fizeste um deus... e, de repente, num festim, em meio a um banquete, a morte veio ferir-te. Em alguns segundos passaste dos prazeres tempestuosos de uma existência egoísta à obscuridade profunda em que hoje erras. Esse isolamento e essas trevas, não os mereceste? por que verias agora, tu que deixaste na noite da ignorância os que terias podido esclarecer? por que serias requestado e acolhido, desde que não podes oferecer aos teus amigos da Terra os prazeres que vos reuniam, e já que não acolheste nem requestaste aqueles a quem poderias ter dado um pouco de esperança e de resignação, essas riquezas do coração que os mais pobres podem possuir em abundância? Por que és tão infeliz? Ah! nós o vemos, nós, a quem nada é escondido; o de que lamentas são os prazeres que não podes mais desfrutar, a companhia que partilhava tua vida folgazona, a quem a orgia fazia que esquecesses o sofredor e o infeliz.

“De todos esses prazeres, dos quais havias feito o objetivo único de tua vida, que te resta, agora que teu corpo voltou à terra? Crê-nos, resigna-te a um infortúnio que não deves senão a ti mesmo. Consagra a meditar sobre a inutilidade de tua vida passada o tempo que empregas a gemer; e se quiseres obter a luz que desejas tão ardentemente, desliga-te inteiramente desses laços materiais que ainda te mantêm acorrentado.

“Até lá, a mulher que procuras permanecerá invisível para ti. Ela mesma está tão afetada por essa obscuridade terrível que não a pode dissipar senão quando reconhecer seus erros e tomar boas resoluções para suportar as provas diante das quais faliu.

“Tu me ouves, tu me compreendes. Pobre Espírito. Escuta a minha voz; é um amigo que te fala; é um irmão que conheceu a fraqueza e que se serve de sua experiência para esclarecer-te. Reflete bem as minhas palavras, aproveita-as, e quando voltares a esta assembléia simpática, esperamos que então lamentarás a vida dissipada tão levianamente, e que te prepararás um futuro mais digno, através de firmes resoluções. Não percas um tempo precioso para procurar tua mulher; ainda não poderias encontrá-la, porque faz parte de tua provação ignorar se ela vive ou se está no mundo dos Espíritos.

“Adeus, irmão infeliz. Tens a nossa simpatia e o nosso sincero interesse pela tua sorte.”

Brunat

III – Após alguns instantes, um Espírito ainda mais infeliz que o primeiro apoderou-se do médium e o pôs em estado de agitação extrema. Enfim, pouco a pouco, volta a calma e o Espírito pode comunicar-se e falar.

“Eu o quero, eu o quero!... matei-me para o rever!... Por que não está aí? Que devo fazer? Devo enforcar-me mais uma vez?... – Mouraille! Mouraille! onde estás? Sei que morri... enforquei-me!... não podia mais suportar a vida! – e, contudo, ainda estou separada de ti... Se não sentisse que vivo, diria que a morte aniquila tudo! Mas vivo, meu Deus, uma vida terrível!... e então... então tu deves viver também!... e estás perdido para mim como no primeiro dia de tua morte! – Ah! como sofro...

“Oh! quantas vezes, quando eu era ainda viva, ouvi o estalo do chicote diante da porta! Ouvia os teus passos na escada... sentia bem que eras tu; mas não te podia ver... Não ouvi uma vez, mas cem vezes, e sempre à mesma hora!

“Meu Deus, deixei este mundo por uma morte horrível; abandonei tudo; por quê? Para nada ver... para não ter apoio nem consolo... Muitas vezes ainda vou ao meu quarto e, quando estou lá, ouço sempre o estalo do chicote e te escuto andar, mas nada vejo...

“Oh! como esta noite me assusta, como este silêncio me acabrunha... É esta a consolação que dá a morte?... Se é verdade que existe um Deus supremo, por que nos faz nascer? por que nos faz viver? por que nos faz sofrer?... e, depois de morto, é preciso sofrer mais ainda... Mas, por que falo? ninguém me ouve, ninguém me compreende. Chamo, e nem mesmo o eco me responde. Nada... nada além de um silêncio terrível que me agita e me faz sofrer... Oh! se ainda há seres que me possam ouvir, que me possam escutar, vinde em meu auxílio, eu vo-lo suplico!

“Onde estou?... Vou ao cemitério; encontro o corpo daquele que me chamou para a eternidade... Mas, nada de consolação... Volto à minha casa... ainda nada! E, contudo, falo, pelo que pude compreender, por uma voz desconhecida, que me é simpática... Mas, a quem falo? e por que exprimir minhas queixas e dar palavras a meus lamentos, desde que ninguém me ouve nem pode compreender-me?

“Oh! meu Deus! como esta noite é horrível!... Quantos tormentos! é o inferno; oh! certamente é o inferno!... Acreditava que se queimava no inferno... Mas queimar não deve ser nada em comparação com o que sofro... Estou sentada num local isolado e obscuro... Sinto um frio glacial e daqui faço duas corridas: vou ao cemitério, e do cemitério à minha casa, e volto sempre esmagada de fadiga, a morte na alma!... Nada de sono para entorpecer minhas pálpebras! nada de trégua, nem de repouso... nada de calma para minha alma agitada!

“O vazio me envolve!... Vou recomeçar minha corrida rude e penosa... Talvez o veja; mas, se não o vir, ao menos irei escutar os estalos de seu chicote e seus passos barulhentos!...”

IV – Depois de uma pausa de alguns instantes, os traços do médium tomam uma expressão doce e calma; o Espírito Brunat retorna e, com voz simpática, dirige-se a esse pobre Espírito e lhe fala assim:

“Escuta-me, pobre alma sofredora: Acreditas estar só e abandonada; escutas uma voz amiga, conquanto invisível para ti. Dizias há pouco que nem mesmo o eco respondia aos teus lamentos; mas, lembra-te de que destruíste tua vida, voluntariamente, violentamente, vida esta que não te pertencia, que devias dedicar aos teus irmãos infelizes. Sabias que agias mal! Deixa de procuras inúteis! Estais separados por um abismo de trevas. Ora; substitui teus vãos lamentos por um pesar ardente e sincero e por boas resoluções, únicos que podem levar-te um raio de luz.

“Coragem!... Implora o Deus de bondade e de misericórdia, e ele te ajudará a sair um dia desta horrível situação.

“Lembra-te bem, em tuas mais dolorosas crises, de que tens em mim um amigo e um irmão.”

Brunat

– Observação do presidente do grupo: “Nem o médium, nem nenhuma das pessoas presentes conheciam esses dois Espíritos sofredores.”

“Tendo tido ocasião de falar do caso, foi-nos dito que, com efeito, o marido morreu em meio a um banquete há alguns meses, e que sua mulher enforcara-se poucos dias atrás.

“A pessoa que deu estas informações acrescentou, a propósito da mulher, que o seu suicídio não surpreendeu a ninguém no quarteirão, e que a Sra. Mouraille, depois da morte do marido, muitas vezes dizia que o ouvia dar chicotadas no ar (ele era negociante de gado), andar na escada, e que desejava ardentemente morrer para ir ao encontro dele o mais depressa.”

R.E. , novembro de 1869, p. 461